
Às vésperas de sua última vinda ao Brasil, em 2006, para lançamento do livro A teoria da alienação em Marx, Mészaros concedeu uma entrevista a Ivana Jinkings, editora da revista Margem Esquerda e proprietária da Editora Boitempo. A seguir, reproduzimos alguns trechos da entrevista, publicada pela agência Carta Maior e reproduzida pelo site HistóriaNet. A íntegra da entrevista foi publicda no número 7 da revista Margem Esquerda. Os trechos que seguem servem aqui como objetos de refexão e discussão.

ISTVÁN MÉSZÁROS - Sem dúvida foram. Meu avô paterno foi um mineiro que morreu tragicamente na mina de carvão onde trabalhava, em acidente causado pela negligência criminosa dos proprietários e gerentes com os equipamentos de segurança, a exemplo do que continua ocorrendo em muitas partes do mundo. Essa lembrança sempre esteve presente em minha família. Além disso, os anos da minha infância coincidiram com a "grande crise mundial de 1929-33" e as suas conseqüências. Viver aqueles anos resultou certamente numa inesquecível experiência para todos os que foram jogados no caos dessa brutal crise. Minha atuação na fábrica de aviões de carga foi apenas a primeira das muitas que exerci, por exemplo, na fundição de aço em uma fábrica de tratores, em duas diferentes funções em fábricas têxteis (uma delas em um galpão gigantesco e ensurdecedor, com duzentas máquinas em operação), no pós-guerra, e no departamento de manutenção de uma ferrovia elétrica, que demandava o trabalho mais pesado de todos. Ao mesmo tempo, a solidariedade compartilhada entre as pessoas nesses diferentes locais de trabalho foi uma experiência comovente e compensadora. Uma compensação necessária para as privações e dificuldades que os trabalhadores, entre os quais, eu mesmo, por algum tempo, tiveram de enfrentar. Sempre que escrevo sobre a necessidade vital de solidariedade em qualquer sociedade viável do futuro, sem a qual a sobrevivência da espécie humana é inconcebível, eu o faço com a certeza de que a solidariedade não é um postulado idealizado, mas um poderoso princípio prático que guia e enriquece as relações humanas ainda hoje. O que aprendi em minha variada experiência laboral facilitou meu comprometimento com a visão de uma ordem mundial muito diferente, que precisamos ter como alternativa à nossa presente sociedade. Não aprendi sobre as condições de vida da classe trabalhadora por meio dos livros, eu as vivi diretamente e de muitas formas. Assim como não aprendi nos livros a total insustentabilidade da desigualdade feminina - sobre a qual discuti no capítulo 5 de 'Para além do capital'. Era suficiente comparar o meu pagamento, de um trabalhador muito jovem, com o da minha mãe, que recebia menos apesar de realizar um trabalho muito mais qualificado. Esses "fatos da vida" foram tão óbvios que era impossível ignorá-los ou esquecê-los. Pelo contrário, eles se tornaram orientações sobre meu modo de pensar todas as questões maiores. Percebi cedo que o mundo social, organizado com base nas desigualdades que presenciei diretamente, não poderia ser justificável nem sustentável. Naturalmente, levou muito tempo para que eu entendesse completamente porque uma ordem tão brutalmente desigual se constituiu na forma como hoje a sociedade se apresenta; mas compreendi também que existem as necessárias e socialmente sustentáveis - bem como humanamente justificáveis - alternativas correspondentes. Essa é a maneira pela qual uma experiência formadora mais ou menos difícil se torna, para melhor ou pior, uma parte orgânica do próprio modo de pensar e escrever. Talvez valha mencionar que o modo pelo qual os intelectuais definem suas posições nos seus escritos depende em grande medida da dinâmica da confrontação histórica em curso entre o capital e o trabalho. Como sabemos pelas experiências históricas passadas, evidências de um maior radicalismo no movimento trabalhista, denunciando as contradições da sua vida, agravadas sob o governo do capital, são seguidas por intelectuais tradicionais, que também tendem a assumir uma posição mais combativa. E, vice-versa, quando o trabalho é forçado a assumir uma postura mais defensiva, muitos intelectuais se tornam introvertidos, evasivos e desorientados. O lamentável conto da pós-modernidade oferece uma boa ilustração dessa matéria. Mas, indicar essa conexão objetiva não significa justificar as suas conseqüências negativas. Se tomarmos seriamente "a responsabilidade dos intelectuais", não poderia haver justificativa para a omissão. Sobre isso, Julien Benda escreveu, em meados dos anos 1920, um poderoso panfleto intitulado "La trahison des clercs", igualado em intensidade ao 'J'accuse', de Zola, no caso Dreyfus. Em 1951, Benda visitou a Hungria e tive o privilégio de conhecê-lo em casa de Lukács. Nas últimas três décadas, relembrei muitas vezes esse encontro e sua nobre resistência exposta aos colegas acadêmicos no "La trahison des clercs". Para todo intelectual crítico, é fundamental ter um papel na transformação social positiva, da qual necessitamos tão urgentemente. Eles não podem abdicar desse papel, mesmo quando parece haver alguma circunstância atenuadora. O desafiador panfleto de Benda é um persistente lembrete disso que ainda nos afeta, a todos.

IM - É o 'downsizing produtivo' em nome do "avanço tecnológico". Assim o sujeito humano real fica à mercê de determinações desumanas nesse mundo louco do 'downsizing', em que a tecnologia parece ter assumido uma forma independente de vida, com vontade própria e poder incontestável de tomada de decisão. E, em vista das conseqüências destrutivas, não resta dúvida quanto à desejabilidade da tomada do controle sobre a ciência e a tecnologia capitalisticamente alienadas. [Jürgen] Habermas fantasia sobre o que denomina de "'cientização' da nossa tecnologia". A situação real é exatamente o contrário. Pois, durante o último século do desenvolvimento produtivo do capital, o que se viu só pode ser caracterizado como a crescente 'tecnologização da ciência', diretamente determinada pela intensificação das contradições do sistema e, ao longo da quatro últimas décadas, pela sua crise estrutural. Por isso, é imperativo que se assuma o controle sobre as forças que hoje parecem obedecer a uma lógica independente própria, de caráter 'hostil' e de impacto destrutivo claramente visível.
A sociedade de produtores livremente associados não pode abraçar a ilusão insistentemente promovida de que o "pequeno é bonito", com sua tecnologia igualmente ilusória. Esse princípio orientador não é mais realista do que esperar a reforma do capitalismo pela adoção do imposto Tobin (6). A sociedade tem de produzir o mais alto nível de tecnologia criativa para ter sucesso na satisfação das aspirações legítimas das grandes massas. E há de ser assim que a sociedade vai passar das restrições mutilantes e das limitações avarentas da exploração capitalista do tempo de trabalho para a riqueza que flui da organização da reprodução social sobre a base do 'tempo disponível' de seus indivíduos. Somente com esse tipo de estrutura social reprodutiva se poderá fazer desaparecer do quadro a hostilidade da tecnologia. Não há dúvida quanto à necessidade de "derrubar" as cercas protetoras do capital se quisermos transformar nossa relação inevitável, ainda que hoje desumanizadora e escravizadora, com a tecnologia numa outra sustentável.

IM - Com o "coração animado" e uma firme determinação. Conforme já se enfatizou antes, o autêntico pensamento crítico nunca se extingue, por mais que os interesses ocultos tentem impor conformidade universal. Não há possibilidade de esses esforços prevalecerem; nem mesmo sob as condições de uma ditadura militar resultante de crise importante, como pode atestar o povo brasileiro. Isso não se deve a alguma vaga obrigação moral, mas ao fato de a repressão permanente das vozes críticas entrar em conflito com os requisitos reprodutivos do sistema do capital. Sob determinadas condições históricas elas podem ser suspensas, mas em hipótese alguma permanentemente. Está longe de ser acidental que, com o passar do tempo, os estados de emergência impostos pelas ditaduras militares gerem suas próprias crises, trazendo consigo a reconstituição da "normalidade" capitalista, com suas tradicionais "regras do jogo" e as correspondentes instituições políticas. Mais uma vez, os brasileiros conhecem bem essas mudanças. O grande desafio do nosso tempo, portanto, é descobrir como 'ampliar significativamente a margem do pensamento crítico'. Vivemos sob as condições da crise estrutural do capital e simultaneamente com a 'crise estrutural da política'. As formas e instituições tradicionais da política, inclusive os partidos políticos e o Parlamento, já não são capazes de assegurar nos seus próprios domínios os requisitos reprodutivos do sistema do capital. O fato de terem sido privadas de seus antigos poderes de tomada de decisão, em virtude da profunda crise estrutural da ordem social metabólica estabelecida, não resolve coisa alguma. Apenas enfatiza a total inviabilidade das condições prevalentes, ainda que, para se armarem de coragem, os ideólogos do sistema continuem a recitar em voz alta, e no escuro, o credo de que "não existe alternativa". Ao mesmo tempo, os mais implacáveis, como os 'neocons' nos Estados Unidos, continuam a fantasiar que a solução da crise está na imposição ubíqua, por meios militares, das formas mais autoritárias de governo propostas abertamente. Não foram capazes nem de entender o significado dos requisitos reprodutivos do capital, muito menos de admitir que seu "remédio" está em nítido desacordo com esses requisitos. O Estado, apesar de seu papel crucial para a sobrevivência do sistema, não é de forma alguma uma 'entidade homogênea'. Pelo contrário, é cheio de contradições. Se o Estado pudesse se transformar numa entidade homogênea, não haveria espaço para o pensamento crítico. Assim, seriam sombrias as perspectivas de uma solução viável para a crise estrutural de nossa ordem social. Mas a conflituosidade irreprimível das relações manifesta no funcionamento estatal oferece também 'alavancagem' para desenvolvimentos positivos possíveis. Ao longo do século passado - para ser mais preciso, desde o surgimento do imperialismo moderno - a subserviência do Estado às grandes corporações aprofundou-se, resultando na defesa ativa de relações socioeconômicas cada vez mais iníquas. Sob esse aspecto, vale lembrar que depois da Segunda Guerra Mundial os governos formados pelos partidos social-democratas proclamaram orgulhosamente a política de "tributação progressiva" e a diminuição da desigualdade social implícita nessa política. Ironicamente, não somente eles não conseguiram cumprir suas promessas, mas o que vimos na verdade foi exatamente o contrário do que foi alardeado..

IM - Não. A matriz das aspirações de emancipação não pode em hipótese alguma estar no sistema do capital. Se estivermos seriamente interessados na realização completa do mandato emancipador, com suas dimensões formais e informais, teremos de imaginar uma ordem metabólica social da qual se removam todas as determinações e defeitos incorrigíveis do capital. Evidentemente é preciso ter em conta o fato de que são necessários muitos passos até que se chegue àquele estágio, e que eles não podem ser dados num futuro hipotético. É preciso começar imediatamente, no presente, assumindo o controle das alavancagens e mediações práticas pelas quais deve passar o progresso, desde o presente realmente existente até o futuro esperado. É fundamental ter uma boa avaliação das nossas forças e recursos, tal como definidos pelas restrições do presente e pelas mediações mais ou menos limitadas ao nosso alcance. Mas nem mesmo um progresso reduzido será possível se não tivermos uma estrutura estratégica de orientação: um 'objetivo geral' que pretendemos atingir. O convite a se deixar orientar pela defesa estratégica da "mudança gradual" pode superficialmente parecer tentador. Mas na realidade essa proposta é enganadora e desorientadora, pois tende a permanecer cega se não se integrar numa estrutura estratégica abrangente, o que equivale a cancelar a nossa autodefinição retórica e geradora de slogans. IJ - Como você avalia o recente avanço da esquerda na América Latina? Seria uma tendência real no continente? IM - Acredito que é uma tendência em desenvolvimento concreto, de verdadeira e grande importância. Na presente conjuntura, de transformações históricas de longo alcance, as potenciais implicações do avanço da esquerda na América Latina, nas nossas previsões "globalizantes", são universais, muito além das fronteiras do continente. Da mesma maneira, tenho plena convicção de que a globalização capitalista não pode ser mantida, apesar de todos os esforços econômicos, políticos e propagandísticos investidos nela. Quando falamos sobre as esperançosas perspectivas do avanço da esquerda na América Latina, não podemos exagerar a importância de alguns êxitos eleitorais, os quais são anulados por infelizes reveses no terreno socioeconômico e político, confirmando assim o ditado francês "plus ça change, plus c'est la même chose". Para isso, podemos apontar no passado recente algumas muito dolorosas decepções em mais de um país latino-americano. Ou seja, dadas as condições da globalização necessária, essas conquistas da esquerda somente podem ser consideradas potencialmente duradouras, o que poderia ser 'generalizado' no curso correspondente, isto é, 'sustentável socialmente, como uma alternativa viável em escala global adequada'. O que decide essas questões é o 'componente social' das mudanças que seguem o sucesso político, e não uma vitória eleitoral, mesmo que pareça espetacular à primeira vista. Isso explica porque o presidente Hugo Chávez fala inequivocamente sobre a dura alternativa do "socialismo ou barbárie" e sobre a necessária 'ofensiva' para derrotar as forças da barbárie. A articulação e a consolidação das forças da esquerda na América Latina trariam, obviamente, conseqüências imensas para os Estados Unidos e, inevitavelmente, para o resto do mundo. Eu cultivo essa esperança desde 1971, quando tive a oportunidade de conhecer melhor as condições de muitos países latino-americanos ao lecionar, pela primeira vez, na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Desde então, aconteceram muitas coisas e, de fato, mais recentemente em uma direção positiva. A fase de dominação semicolonial dos Estados Unidos sobre a América Latina está sendo derrotada em todo o continente. A necessária solução passa pela formação de uma 'estrutura unificada', que surgiu com Bolívar no horizonte histórico da América Latina há quase dois séculos. Onde no mundo podemos encontrar um projeto histórico mais válido e mais profundamente enraizado a esse respeito? A criação de uma unidade de trabalho - por meio da Alba (Alternativa Bolivariana das Américas) e de outras substanciais iniciativas de cooperação - não seria efetiva apenas em barrar a continuidade dos esforços neocoloniais norte-americanos, mas também um exemplo para outras regiões do planeta, nas quais a necessidade de cooperação concreta, com um declarado conteúdo socialista, é igualmente grande. É assim que os avanços da esquerda na América Latina podem se tornar generalizáveis no curso correspondente, como um elemento vital para uma mudança histórica duradoura.
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